sábado, 2 de junho de 2018

Coração-travessia: vigésimo quarto dia | Juazeiro do Norte | impressões

Os afetos. Este texto deveria ser um relato de viagem, nem sei se à moda de Caminha ou de Kerouac, mas não será mais do que as minhas impressões sobre os 7130 km percorridos ao lado de três amigos, três irmãos. Partimos de Juazeiro do Norte um pouco mais que às seis da manhã do dia 28 de dezembro de 2013. Elandia, Ythallo, Batata e eu. Amizades construídas por alguns muitos anos e que se mostraram fortes nesses últimos 24 dias, nas estradas que percorremos. Não tínhamos dinheiro. Não tínhamos GPS. Não tínhamos ambição alguma. Alguns sonhos moviam nossa travessia. Sonhos íntimos e sonhos coletivos. Era uma busca, a qual estávamos entregues completamente. Dois filmes e a estrada. Chegamos a João Pessoa e nos instalamos na casa de outros irmãos nossos, de longo tempo. Uma noite apenas na capital paraibana e já descobrimos ali a tônica da viagem inteira: planos, discussões e risadas, muitas risadas. Começamos na Parahyba nosso documentário “Coração-travessia: poetas na estrada”. A poesia no meio de tudo isso: fosse encarnada em palavras, em imagens ou em descobertas. Descobertas de caminhos, de paisagens, de limites, deslimites. Encontramos em cada lugar, em paradas de almoço, de café ou de jantar, em músicas tocadas no som do carro, um motivo para seguirmos em frente e seguros de que aquela seria a primeira grande viagem de nossas vidas. Em Penedo, às margens do Rio São Francisco, chegamos ainda felizes em termos conhecido a primeira grande figura de uma viagem repleta delas: Alisson, em Maceió, amigo de Judson, outro nosso irmão. Ficamos na antiga cidade do velho Chico durante três dias. Lá, demos início a ficção “Coração batente por debaixo de tudo”. Fizemos grandes sequencias do nosso filme e tivemos uma memorável festa de virada de ano. Os quatro, fizemos um churrasco, regido por Batata e regado a deliciosas cachaças. A cada dia juntos víamos detalhes de nós mesmos que só uma família pode enxergar, os defeitos e as qualidades. Lembro com muita felicidade do cuidado de Batata ao montar e desmontar os equipamentos de som, a todo momento que usávamos; o perfeccionismo de Ythallo ao montar o foco da câmera e montar o quadro da sequencia a ser filmada; o esmero de Elandia com todos nós, com seu “carinho bruto” e afetuoso por tudo. Talvez seja isso que mais guardei nessa viagem. Seguimos para a Bahia depois de atravessar o Rio São Francisco numa balsa carregada de esperanças e desejos ainda. Os sonhos revoltavam em nós. Paramos em Cachoeira para dormir, uma cidade escondida e perdida no meio da Bahia, com uma história de há séculos erigida pela força afro-brasileira; paramos no dia seguinte em Porto Seguro, um shopping a céu aberto carregado pela força de primeira cidade dos “descobrimentos”. Descobrimos que a paciência deveria ser o bem mais precioso que todas as minas gerais a serem cruzadas. Fomos, então, para a nossa segunda grande parada: Vitória-Cariacica-Vila Velha, no Espírito Santo. Na casa da família Zanotti encontramos todo o afeto possível: do cão labrador Tody, aos pais de nosso irmão Tiago, que nos receberam de braços abertos. E o Rendez-vouz, onde temos uma foto estampada como os maiores bebedores de cachaça que já melaram a goela naquele bar. Nossa travessia ganhava corpo e o corpo ainda não trazia qualquer cansaço. Fomos para o Rio de Janeiro, mais irmãos ganhamos nos três dias que ficamos ali: Gabraz e Anne. Num velho casarão do Catete atravessamos a novidade que a amizade e fraternidade trazem para nossa vida. Depois de bebermos com Drummond de Copacabana e Noel Rosa de Vila Isabel, seguimos para Minas Gerais. Nosso susto! Paramos em Barbacena, ainda inebriados de contentamento com tantos irmãos novos, e nos deparamos com a loucura do mundo, a loucura do holocausto brasileiro no complexo de manicômios de Barbacena. Uma bordoada na nuca que só foi recuperada nas ladeiras de Ouro Preto, com a coxinha do Barroco e a beleza das Geraes. Ficamos na República Tabu e a sorte nos guiava na travessia. Muitas filmagens. Trabalho excessivo de quem queria conhecer tudo em poucos minutos, de quem queria abarcar os corações todos em uma travessia. Cansaço! Fomos para Belo Horizonte. Na família Prado, fomos recebidos pelo nosso irmão Luís, o mineiro. Conhecemos ainda o Flamingo e a Andréa. Uma irmandade multiplicava nossos quatro corações em mais afetos. Três dias depois de ficarmos na capital mineira, partimos rumo ao planalto central. Paramos ainda em Cordisburgo, a terra de Guimarães Rosa, de tanto riso e tanto choro, emoção incontida, fiquei perdido às margens do Grande Sertão. Revi minha vida e me sabia rumando ao Liso Do Sussuarão. Em Paracatu, cidade meio goiana meio mineira, comemoramos o aniversário de Ythallo no mais original modo caririense: Ypióca, tira-gosto, poesia e piadas a perder de vista. Partimos. Luciano Lourenço, testemunha de nosso cansaço, nos recebeu na capital federal, deu-nos ânimo extra e seguimos rumo casa. Paramos ainda numa cidadezinha do Goiás e entramos novamente na Bahia. O carro parou, demonstrando mais cansaço que nós quatro juntos. Nossa bateria estava fraca, mas a do carro morreu completamente. Fomos resgatados pelo seguro do carro até chegar a São Raimundo Nonato que é nossa casa, pois casa de Judson e Manu. Novos velhos afetos. Em Oeiras encontramos Thascira, minha Thascira, que nos deu suporte para o último trajeto até chegarmos em casa. Casa! Casa? Alguns dias depois de terminada a travessia, pergunto-me se “casa” não é a hora em que abríamos as caixas de comida e tirávamos os macarrões instantâneos, esquentávamos a água; ou quando o prato de um estava sujo e o outro lavava; quando o copo de um estava no fundo da mala e usava-se o de outro; ou quando o cigarro de um acabava e o cigarro de outro era o de todos; ou quando o medo de um era sufocado pelo abraço, pela piada, pela determinação. Pergunto-me, agora, que casa? Minha casa é nos braços de meus amigos, meus irmãos. Minha casa é afetos.

Harlon Homem de Lacerda Sousa

Juazeiro do Norte, 22 de janeiro de 2014.

Coração-travessia: vigésimo primeiro, vigésimo segundo e vigésimo terceiro dia | SRN e Oeiras

Vigésimo primeiro e vigésimo segundo dias: São Raimundo Nonato

Qual o sentido do abismo? Todos que estávamos com os corações em travessia perguntamo-nos quando acordamos na cidade de São Raimundo Nonato, na Serra da Capivara, Piauí. Depois de uma chegada aflita, no meio da madrugada, fomos recebidos por nosso irmão e anfitrião, Judson Jorge. Na casa da senhora Manu Moraes, sentimo-nos em casa, depois de longa viagem no “liso do sussuarão” (como nomeamos a passagem do norte de Minas até Riachão das Neves-BA). Um almoço nordestino, uma conversa fraterna, repleta de risadas e regada a boníssimas cachaças da coleção dos nossos anfitriões. Fomos ainda, personagens de nós mesmos na produção de um documentário feito por Ícaro, professor da UESPI, Judson e Manu. Fizemos nossas próprias filmagens e acabamos o dia descansando com um belo churrasco. No dia seguinte, fomos à serra vermelha, num abismo aberto pelo tempo de milhares de anos, recitamos nossa poesia nova e sentimos medo. Alinhamos os sentimentos de temor e arte, numa catarse absolutamente motivada pela vontade de voltar pra casa. Vimos então o sentido de um abismo que dividia a aventura e a saudade. Restava-nos a vontade de transpor tudo e chegar em casa.

Vigésimo terceiro dia: Oeiras

Chegamos à “velha urbe”, Oeiras, de ônibus. Nosso carro já havia sido guinchado para Picos. Fomos recebidos pela bela Thascira Ribeiro, no bairro do Rosário: o bairro negro da cidade negra de Oeiras. Mais uma vez fizemos nossas filmagens, contando com a participação de nossa anfitriã, agora também atriz do coração-travessia. A tarde seguiu tranquila até a noite de apresentação dos Congos de Oeiras, que filmaríamos. Terminada a apresentação, regressamos à nosso pouso e iniciamos uma estranha dança noite a fora com milhares de muriçocas. Acreditando que a manhã jamais chegaria, adentramos no último dia de viagem.